sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

A DIVA DO SAMBA DONA IVONE LARA



Yvonne Lara da Costa nasceu no Rio de Janeiro, RJ em 13 de Abril de 1921.
O pai, João da Silva Lara, era mecânico de bicicletas, além de violonista e componente do Bloco dos Africanos. D. Emerentina, a mãe, era pastora do Rancho Flor do Abacate.
Aos seis anos de idade, ficou órfã de pai e mãe, sendo internada por parentes no Colégio Orsina da Fonseca, no bairro da Tijuca, Zona Norte do Rio de Janeiro, onde permaneceu até os 17 anos.   Aos 12 anos, foi presenteada pelos primos e futuros parceiros, Hélio e Fuleiro, com um pássaro "Tiê-sangue". O nome do pássaro e a expressão "Oialá-oxa", herdada da avó moçambicana, serviram de inspiração para o primeiro samba composto: "Tiê, Tiê".É espantoso como as músicas de Dona Ivone Lara remetem a ancestrais cantigas de domínio público. Parece que suas sinuosas melodias estão imemorialmente gravadas no inconsciente coletivo e ela apenas as retira de lá para, como uma Iabá, fazer com que breves instantes de transcendência possam rasgar vez por outra a malha ordinária do dia a dia. A essa formidável capacidade, somam-se outras. Foi Dona Ivone, por exemplo, a primeira mulher a assinar um samba-enredo --e não se trata de um samba qualquer, mas de "Os Cinco Bailes da História do Rio", parceria com Silas de Oliveira e Bacalhau, que o Império Serrano levou à Avenida em 1965. Foi ela, também, a responsável pela criação de pérolas como "Sonho Meu" e "Acreditar" (ambas com Delcio Carvalho), "Mas Quem Disse Que Eu Te Esqueço" (com Hermínio Bello de Carvalho) e "Enredo do Meu Samba" (com Jorge Aragão), que integram sem favor o rol dos maiores clássicos do nosso cancioneiro. Além disso, saindo de uma infância pobre e de um núcleo familiar iletrado, Dona Ivone formou-se assistente social e enfermeira, e trabalhou com a Dra. Nilse da Silveira na aplicação das terapias que revolucionaram, nos anos 1970, o tratamento psiquiátrico.

Muitas faces
As tantas facetas que se amalgamam na singularidade dessa personagem que é mito e sinônimo de canção, referência e signo da ancestralidade africana, nunca haviam sido objeto de análise sob a forma de livro. Até agora. Pois a Record acaba de lançar "Nasci Para Sonhar e Cantar - Dona Ivone Lara: A Mulher no Samba", de Mila Burns. A obra é uma adaptação da dissertação de mestrado da autora em antropologia social (pelo Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro). Digno de elogios por preencher uma lacuna da bibliografia sobre a música popular --e, mais genericamente, sobre a cultura brasileira--, o livro narra a história de Dona Ivone da infância aos dias atuais, carreando, na trajetória da protagonista, as profundas mudanças por que passou o país durante o século passado. O ponto central do exame feito por Mila é a tentativa de compreender como uma menina negra e carente, moradora do subúrbio, transformou-se em diva do samba.  A jornalista e antropóloga elenca possibilidades: o fato de a família da sambista ser ligada ao gênero; o casamento com o filho do presidente de uma renomada escola (a extinta Prazer da Serrinha); a capacidade de se impor em um nicho majoritariamente masculino --o dos compositores. Cada uma dessas "razões" é investigada a fundo, à medida que a vida da protagonista se descortina. Mila demonstra, entre outros detalhes, como Dona Ivone experimentou em âmbito radicalmente íntimo o encontro entre popular e erudito que viria a dar contornos particulares à música brasileira. Provinda de uma família de sambistas e chorões --a mãe desfilava em ranchos, o pai tocava violão de 7 cordas--, a compositora estudou canto orfeônico no internato público, onde permaneceu dos dez anos até a maioridade.  Na escola, chegou a ser aluna de dona Lucília Villa-Lobos, então casada com o maestro. Curiosamente, Dona Ivone também teve aulas de música com Zaíra de Oliveira, a primeira esposa de Donga. No universo próprio que aos poucos se esboçava, a ela operava a síntese entre dois polos: "Fui pro colégio interno, vi um mundo diferente. Voltava pra casa, via outra coisa. Saía de novo, e mais uma coisa", observa no livro.
Aos 12 anos, estreou como compositora. Estava em casa, acompanhada dos primos mais velhos, Hélio e Fuleiro, que lhe deram um passarinho. As brincadeiras com o bicho inspiraram "Tiê-tiê", canção ainda hoje incluída em seu repertório. E Fuleiro, que mais tarde viraria baluarte do Império Serrano, acabou se transformando num dos principais responsáveis pela caminhada da prima no mundo artístico. Foi ele, na verdade, quem começou a cantar as músicas da compositora em rodas de samba. E o fez a pedido da própria, que, ainda jovem e intimidada com o domínio masculino em tais espaços, procurou-o e propôs que apresentasse suas canções como sendo dele.   Dona Ivone frequentava essas rodas, inclusive a que ocorria na casa de Seu Alfredo Costa, o comandante da Prazer da Serrinha. Lá, conheceu o futuro marido, Oscar (filho de Seu Alfredo), e começou a ganhar confiança para apresentar publicamente seus sambas. Quando um grupo dissidente deixou a Prazer da Serrinha e fundou o Império Serrano, ela foi junto. Corria, então, o ano de 1947, e Dona Ivone passou a integrar oficialmente a ala dos compositores da nova escola.
Bambas
Mila conta, no livro, como se deu a parceria em torno de "Os Cinco Bailes da História do Rio". Bacalhau e Silas de Oliveira, este já consagrado autor de sambas-enredo, tentavam escrever o hino do Império para aquele ano, mas não conseguiam. Haviam bebido demais.  Quando Dona Ivone os encontrou e soube da dificuldade, cantarolou parte de uma melodia, que logo ganharia os inspirados versos da dupla. Na época, a escola da Serrinha já era conhecida por trazer inovações ao carnaval, e Fábio Mello, um dos diretores, concluiu que seria interessante reconhecer a participação da compositora e colocar uma mulher assinando o samba junto com os homens. Como sempre se preocupou em manter a estabilidade financeira que lhe garantia a independência, somente após a aposentadoria Dona Ivone pôde se dedicar exclusivamente à música. O primeiro disco, uma coletânea ao lado de Clementina de Oliveira e Roberto Ribeiro, foi lançado em 1970, ano em que ganhou também a alcunha consagrada: por sugestão dos produtores Oswaldo Sargentelli e Adelzon Alves, a Yvonne Lara do registro em cartório deu lugar a Dona Ivone Lara. No livro, ela se recorda do desgosto inicial com o segundo batismo. "Dona? Pra quê Dona? Não quero isso, não, sou nova, ainda! Não tenho nem 50 anos, imaginem!", respondeu aos dois na ocasião. Mila relata ainda o princípio da união com aquele que seria o mais constante parceiro: Delcio Carvalho. Dona Ivone andava deprimida devido à morte de Silas de Oliveira, que teve um infarto enquanto cantava "Os Cinco Bailes". Preocupado com o estado da mulher, o marido Oscar sugeriu a Delcio que escrevesse algumas letras para ela.  Três anos depois, em 1975, foi Oscar quem faleceu, e a compositora enfrentou um período de tristeza intensa. Tristeza que o parceiro soube sentir --e purgar em palavras. "O Delcio fazia letras tristes porque olhava para mim e sabia o que eu estava querendo dizer com as minhas melodias", diz a sambista.
Encantos
O maior encanto de "Nasci Para Sonhar e Cantar" vem exatamente dessas revelações, que documentam fatos relevantes com objetividade e sabor. O que não significa que o livro não tenha problemas. Ao adaptar a dissertação, Mila retirou os excessos de referencial acadêmico, mas o pouco que ficou irrompe brutalmente no texto, causando incômodo.  Em algumas passagens, faltou também uma revisão mais atenta para eliminar a repetição de expressões e ideias. Por fim, há escorregadelas de pesquisa, como a atribuição da autoria do samba "Senhora da Canção" apenas a Nei Lopes, esquecendo-se do violonista Cláudio Jorge. A conclusão a que Mila chega ao fim do estudo é que o percurso de Dona Ivone não dependeu só de seus movimentos internos, embora também deles. Houve, segundo a autora, uma confluência paralela de fatores externos. "Quando a compositora começa a se destacar e gravar seus primeiros discos, o Brasil atravessa uma fase de notável transformação social. A partir dos anos 1960, o bonito era a diferença, fosse ela de raça, faixa etária ou sexo", argumenta. Assim, sem se encaixar em nenhum dos tipos mais conhecidos no meio do samba --não é "tia", nem passista, nem musa--, Dona Ivone entortou o destino previamente traçado para uma mulher de sua origem e de seu tempo. Em quase nove décadas, foi esposa, mãe, enfermeira, assistente social, artista na essência mais plena do termo. Impôs-se como pérola rara (que é) e construiu uma vida tão rica que  virou enredo na Império Serrano neste ano, merecidamente, por toda sua  trajetória,  pessoal e musical  vamos aplaudir, o mito Dona Ivone Lara,  jóia rara  nossa diva do samba....






                                         
                                       
                                         



                                       





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